As empresas de empréstimo estão adotando uma nova modalidade controversa: solicitar o celular do cliente como garantia. Caso o devedor não consiga quitar o débito, o aparelho é bloqueado, impossibilitando o acesso a diversos aplicativos e funcionalidades essenciais. Embora essa prática esteja ganhando força, ela opera em uma zona cinzenta sem regulamentação específica do Banco Central (BC).
Crédito de Alto Risco para Consumidores Vulneráveis
Essa modalidade de crédito é voltada principalmente para indivíduos de classes socioeconômicas mais baixas, oferecendo empréstimos com juros exorbitantes que podem ultrapassar 600% ao ano. O único respaldo exigido é o próprio celular do solicitante, que fica sujeito a bloqueio caso as parcelas não sejam honradas.
Ao inadimplirem, os usuários têm seus aparelhos virtualmente inutilizados, perdendo acesso a uma gama de aplicativos vitais para suas atividades diárias, como trabalho, transporte e serviços governamentais. Para recuperar o controle total do dispositivo, a única saída é quitar a dívida integralmente.
Ausência de Regulamentação Específica
Apesar de atender a milhões de brasileiros, esse modelo de crédito opera sem uma regulamentação específica do Banco Central. Quando questionado, o BC afirmou que as instituições financeiras têm liberdade para oferecer crédito, desde que sigam as leis e normas aplicáveis. No entanto, a regulamentação vigente estabelece que os clientes devem ter acesso a informações claras sobre penalidades, riscos e condições envolvidas na obtenção de empréstimos.
Gerenciamento de Riscos pelas Instituições
O Banco Central esclareceu que, embora não haja normas específicas sobre o uso de celulares como garantia, as instituições financeiras têm autonomia para definir seus próprios perfis de risco e avaliar periodicamente a suficiência dos instrumentos mitigadores, incluindo as garantias recebidas. Isso abrange o gerenciamento do risco de crédito, levando em consideração a adequação das garantias oferecidas.
Aplicativos com Permissões Abrangentes – Empréstimo usando seu Celular como garantia
Para receber o empréstimo, os clientes precisam instalar um aplicativo específico em seus celulares, que atua como um “superadministrador” do dispositivo. Esse aplicativo obtém permissões especiais para acessar e controlar qualquer outro aplicativo instalado, uma prática que vem gerando controvérsias e reclamações.
Relatos de Dificuldades para Remover Aplicativos
Inúmeros usuários têm relatado dificuldades para desinstalar esses aplicativos de crédito, mesmo após quitarem suas dívidas ou desistirem do empréstimo. Muitos alegam que os botões de desinstalação e remoção de acesso administrativo são desabilitados, dificultando a exclusão do programa por pessoas sem conhecimento técnico avançado.
Acesso a Informações Pessoais Negado
Embora os aplicativos tenham permissões abrangentes, as empresas de crédito negam acessar ou armazenar informações pessoais e sensíveis dos usuários. Elas afirmam que essas permissões são necessárias apenas para implementar políticas de segurança e restringir o acesso a funcionalidades não essenciais em caso de inadimplência.
Emissão de Cédulas de Crédito Bancário
Antes mesmo de solicitar o empréstimo, alguns sites exigem que o cliente autorize a emissão de uma Cédula de Crédito Bancário (CCB) junto ao Banco Central. Essa cédula é um título emitido em nome do devedor em favor da instituição financeira, representando o compromisso de quitação do empréstimo.
No entanto, o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) alega que essa prática viola o direito à informação do consumidor, pois não há esclarecimento claro sobre a necessidade de emitir a CCB apenas para simular as condições do crédito. O Idec defende que essa emissão deveria ocorrer somente após o consumidor aceitar as condições finais do empréstimo.
Prática Considerada Abusiva pelo Idec
O Idec classifica a prática de bloquear celulares como abusiva e ilegal, argumentando que ela priva os consumidores de diversos direitos sociais garantidos pela Constituição, como acesso à saúde, transporte e serviços essenciais. Segundo o instituto, o celular é um bem indispensável nos dias atuais, e sua restrição inviabiliza atividades cruciais para a subsistência dos indivíduos.
Ação Judicial contra a Prática de Empréstimo usando seu Celular como garantia
Em novembro de 2022, o Ministério Público do Distrito Federal e o Idec entraram com uma ação no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) para impedir que a empresa Super Sim exigisse a instalação de um aplicativo bloqueador em novos celulares, sob pena de multa de R$ 10 mil por contrato assinado.
Inicialmente, os órgãos obtiveram uma sentença provisória favorável, que proibia a empresa de utilizar o celular como garantia. No entanto, em novembro do mesmo ano, a segunda instância do tribunal aceitou um recurso da Super Sim e suspendeu a proibição até a análise definitiva do caso, que ainda está pendente.
Posicionamento da Anatel
A prática de desabilitar linhas ou aparelhos de clientes devido à inadimplência, conhecida como “kill switch”, é considerada abusiva pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) quando praticada pelas operadoras de telefonia. No entanto, a Anatel esclarece que seu escopo regulatório se restringe às redes de telecomunicações e ao mercado de telefonia, não abrangendo aplicativos ou soluções financeiras.
Portanto, o bloqueio de celulares por meio de aplicativos não é regulado pela Anatel, embora a agência considere o bloqueio de linhas móveis por motivo de inadimplência uma prática abusiva.
Postura do Banco Central
Ao ser questionado sobre a regulamentação dessa modalidade de crédito, o Banco Central reiterou que não há norma específica para empréstimos com garantia de celular. No entanto, a instituição enfatizou que as instituições financeiras devem seguir as leis e normas aplicáveis, bem como seu objeto social e autorizações requeridas.
Além disso, o BC destacou que a regulamentação vigente determina que as instituições financeiras devem assegurar a adequação dos produtos e serviços oferecidos às necessidades e interesses dos clientes, prestando informações claras e precisas sobre direitos, deveres, custos, penalidades e riscos envolvidos nas operações.
Defesa das Empresas de Crédito que usam Celular como garantia
Em resposta aos questionamentos, a empresa Super Sim defendeu seu modelo de negócios como viável e aplicável no Brasil, afirmando que opera dentro dos limites legais estabelecidos e respeitando integralmente o ordenamento jurídico vigente.
Quanto à emissão da Cédula de Crédito Bancário (CCB), a empresa esclareceu que inicialmente há apenas uma solicitação para o envio posterior da CCB, que será enviada após a aprovação final da concessão de crédito.
A Super Sim também afirmou que seu aplicativo solicita apenas duas permissões: a de administrador do dispositivo, para implementar políticas de segurança e restringir acesso a funcionalidades não essenciais em caso de inadimplência, e a permissão para enviar notificações relevantes aos clientes.
Segundo a empresa, essas permissões não dão acesso a informações pessoais ou sensíveis dos usuários, sendo armazenados apenas a marca e o modelo do celular utilizado.
Ademais, a prática de utilizar celulares como garantia em operações de crédito continua sendo um tema controverso e sem regulamentação específica no Brasil. Enquanto empresas como a Super Sim defendem seu modelo de negócios como legal e transparente, órgãos de defesa do consumidor e o Ministério Público questionam a abusividade dessa prática, que pode privar os usuários de direitos e serviços essenciais.
À medida que essa modalidade de crédito ganha popularidade, especialmente entre consumidores de baixa renda, torna-se cada vez mais urgente a necessidade de uma regulamentação clara e abrangente que proteja os direitos dos consumidores e estabeleça limites para as práticas das instituições financeiras.