O mercado de apostas esportivas online, conhecido como “bets“, trouxe à tona uma preocupante suspeita: a possibilidade de fraudes envolvendo beneficiários do programa Bolsa Família. Embora os dados disponíveis sejam incipientes, especialistas apontam para indícios alarmantes que merecem uma análise minuciosa e medidas efetivas para combater eventuais irregularidades.
Números alarmantes e dúvidas persistentes
De acordo com uma nota técnica divulgada pelo Banco Central, as casas de apostas online movimentaram entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês no Brasil até agosto do ano passado. No entanto, esse mercado bilionário ainda carece de regulamentação adequada e tributação proporcional, conforme destacado por fontes especializadas.
O debate ganhou novos rumos quando os dados revelaram a presença de 5 milhões de apostadores pertencentes ao Bolsa Família, dentro de um universo de 24 milhões de pessoas. Esse cenário acendeu um alerta no governo, levando o presidente Lula a anunciar inicialmente a intenção de bloquear o serviço para beneficiários do programa.
Indícios de fraude e lavagem de dinheiro
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pedro Ferreira, observou que a nota técnica do Banco Central é resumida, deixando dúvidas importantes sem resposta. De acordo com o estudo, a mediana das apostas realizadas por beneficiários do Bolsa Família é de R$ 100, ou seja, metade dos 5 milhões de apostadores investiu até esse valor, enquanto a outra metade aplicou quantias superiores.
No entanto, a média das apostas, uma medida superior à mediana, é de R$ 600, indicando a existência de um grupo menor de beneficiários que realizou apostas mais elevadas. Essa discrepância suscitou suspeitas de possíveis fraudes e lavagem de dinheiro, conforme apontado por Ferreira.
“Para mim, isso é um indício claro de que pode se tratar de fraude e/ou lavagem de dinheiro. Explico: o Bolsa Família é bem focalizado, sendo muito suspeito que haja beneficiários podendo gastar muitos milhares de reais em ‘bets’,” avaliou o especialista.
Uso indevido de CPFs de beneficiários
Ferreira ressaltou que casos anteriores de fraudes envolvendo o Bolsa Família, como beneficiários que supostamente possuíam carros de luxo, foram, na verdade, resultado do uso indevido de seus CPFs por terceiros, que os utilizavam como “laranjas”. Essa prática pode estar se repetindo no contexto das apostas online.
A economista e professora de MBA da Fundação Getulio Vargas (FGV), Carla Beni, corroborou a análise de que a confusão entre média e mediana ocasionou uma interpretação equivocada dos dados, sugerindo que muitos beneficiários estariam dispostos a apostar valores significativos. Ela reiterou a possibilidade de desvio de finalidade no uso dos recursos do Bolsa Família e a ocorrência de fraudes, com a utilização indevida dos CPFs dos beneficiários.
Preconceito e discriminação dos beneficiários
Beni ponderou que o foco nas apostas por parte de pessoas de baixa renda expôs o estigma sofrido pela população mais vulnerável. “Infelizmente, observamos a utilização de um estudo do Banco Central para alimentar um caldo de preconceito que levou muitas pessoas, incluindo parte da mídia, a rejeitar o programa e até a sugerir seu cancelamento. Assim, durante esta semana, notamos uma manipulação da pesquisa para destilar preconceito e ódio contra os beneficiários do Bolsa Família,” disse.
Ferreira também alertou para a repercussão “desproporcional e excessivamente alarmista” do tema. Ele ressaltou que os valores reportados pelo Banco Central dizem respeito ao total apostado, mas cerca de 85% desse montante é pago de volta aos apostadores. Portanto, a perda real seria de aproximadamente 15% desse valor, segundo os dados.
Necessidade de evidências e cautela
Ambos os especialistas concordaram que ainda é necessário se debruçar sobre a dimensão real do problema. Ferreira enfatizou que, embora haja evidências de que apostas esportivas prejudicam mais os mais pobres em outros países, no Brasil ainda não há evidências sólidas a esse respeito. “Eu acho perigoso criar um pânico moral em torno do assunto antes de entendermos,” alertou.
Tributação adequada para empresas de apostas online
As empresas de apostas online, conhecidas como “bets“, foram legalizadas pelo ex-presidente Michel Temer em 2018, mas apenas em 2023 foi estabelecida a regulamentação da atividade por meio de uma norma específica. A partir de janeiro de 2025, essas empresas deverão se adaptar às novas diretrizes estabelecidas pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF), criada neste ano sob o guarda-chuva do Ministério da Fazenda.
Até 2025, as empresas do setor serão tributadas como qualquer outro segmento. No entanto, a partir dessa data, para operar no Brasil, elas deverão estar estabelecidas no país, pagar uma taxa de R$ 30 milhões e recolher 12% sobre sua receita líquida, além de estarem sujeitas a outras alíquotas, como Imposto de Renda, CSLL, PIS/COFINS e ISS.
Imposto seletivo para apostas online
A advogada e pós-doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP), Jacqueline Mayer, defende a inclusão das apostas online no imposto seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, que aumenta a carga sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros e bebidas alcoólicas.
“Os dados sobre o perfil dos usuários, o nível de endividamento e os prejuízos ao consumo das famílias, além das questões de saúde mental envolvidas, a meu ver, são absolutamente suficientes para incluir as ‘bets’ como serviço que traz prejuízos à saúde e, portanto, deve se submeter ao seletivo,” afirmou Mayer.
Beni acrescentou que uma tributação elevada sobre essa atividade ajudaria a reforçar o Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar pessoas viciadas nesses jogos.
Integração de saúde pública e educação financeira
Diante das críticas ao plano inicial de bloquear o uso do cartão do Bolsa Família para apostas, o governo federal adiou temporariamente a decisão. A economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, destacou que suspender o benefício dessa população não seria eficiente e poderia agravar o quadro de vulnerabilidade social.
Em vez disso, ela defendeu a priorização de investimentos em saúde pública e educação financeira dos beneficiários, além do estabelecimento de normas para as empresas de apostas. Nesse contexto, uma possível ação seria implementar programas específicos, incluindo a reabilitação de pessoas afetadas.
Proibição de propagandas e regulamentação
Cecília de França enfatizou a importância de uma regulamentação da publicidade de jogos de azar, sugerindo a proibição de campanhas que exploram a vulnerabilidade financeira da população. Celebridades como o cantor Gusttavo Lima e a influenciadora Deolane Bezerra foram detidas por crimes associados a essas empresas.
Beni acrescentou que a expressão “fazer uma fezinha” é parte do imaginário popular brasileiro sobre enriquecimento rápido, especialmente entre as classes mais baixas. As plataformas online facilitam esse acesso, eliminando a necessidade de ir a casas lotéricas ou bancas de jogo do bicho. No entanto, o problema é que as “bets” utilizam estratégias de marketing massivo, com o apoio de influenciadores digitais, para atrair novos apostadores.
“Essas empresas de apostas usam pessoas que são referências, como atletas e artistas, para dizer que, ao jogar, o apostador ficará rico como ele, com a promessa de um dinheiro rápido e fácil para ostentar,” explicou Beni.
Uma possível solução, segundo a especialista, seria tratar esses jogos como produtos semelhantes ao cigarro, impondo restrições publicitárias, como a proibição de patrocínios por meio de plataformas de apostas.
Análise e medidas embasadas
Levando em conta os pontos mencionados, os especialistas concordam que uma análise detalhada dos dados é essencial para entender a magnitude do problema e tomar decisões informadas. Se necessário, estudos adicionais poderão ser conduzidos. Além disso, é fundamental verificar se as apostas estão sendo utilizadas de maneira ilícita, envolvendo fraudes ou lavagem de dinheiro.